quarta-feira, 30 de março de 2011

As estrofes de um disco






em homenagem ao brilhante Dire Straits





Eles moravam em um apartamento até que bonito. Flores na janela, poucos móveis, quase nenhuma comida na geladeira e livros por todos os lados. Mas algo não era compartilhado e isso era motivo da mesma discussão de sempre.

- Por que não?

- Porque é meu e não seu. Se você quer igual, então compre os seus!
- Mas são só discos.
- Se pra você são só discos problema seu. Pra mim é mais que isso.
- Deixa de ser boba e vamos juntar logo nossos discos.
- Para de encher o meu saco. É sempre a mesma coisa!

- Nós moramos juntos há 5 anos. Dividimos tudo e ainda assim você não quer juntar nossos discos?
- Você tem sorte de dividirmos tudo. Eu nem comia na mesa com a minha família. Se considere um privilegiado.
- Arrogante!
- Insistente!


E assim seguiam os dias. Eram feitos um para o outro. Citavam Voltaire no café da manhã e pensavam igual sobre filmes. Pode até parecer chato, mas não era.

Ela ouvia jazz e ele blues. Ela gostava do Batman e ele do Wolverine. Ela preferia café com leite e ele sem. Mas essas diferenças nunca foram importantes.
Ele trabalhava em uma gravadora e ela ficava em casa tentando terminar de escrever seu livro.

Já era noite. Ele chegou do trabalho e foi direto para a geladeira.

- Tem alguma coisa pra comer?
- Acho que tem brigadeiro.
- Só?
- Uhum. Comi o último pão que tinha no armário.
- Precisamos começar a comer comida de verdade.
- Provavelmente. Estou começando a achar que miojo não é tão saudável assim...

Ele sentou ao lado dela no sofá, lhe deu um beijo carinhoso na bochecha e ligou a tv.

- Já começou o American Idol?
- Acho que começou há uns 20 minutos. Tô torcendo pelo loiro. - ela respondeu sem muito interesse e os olhos focados no computador.
- Qual deles? O que canta country ou o que parece que tá sempre com preguiça?
- O que tá sempre com preguiça. Gosto da barba dele.
- Achei que você não gostasse de barba.
- Não gosto. Mas nele fica bonito.
- E como anda o livro?
- Uma porcaria. Ainda não consegui passar da página 43.
- Então ela ainda continua naquele banco de parque pensando?
- Sim. Já faz umas três semanas que ela ainda tá na droga do banco do parque pensando!
- Então deixa ela de lado. Desliga o computador e assisti o Idol comigo.

Como ela passou o dia inteiro tentando escrever e tinha perdido a paciência, seguiu o conselho dele sem nenhuma objeção.
Foi até a cafeteira e o café tinha acabado. Foi até a geladeira e o refrigerante tinha acabado também.

- Aaaaaaaaaaaaaaahhhhhh assim não dá! Até a coca cola acabou!
- Que foi? - ele olhou pra cozinha e ela estava gritando com a geladeira.
- VAMOS NO MERCADO AGORA!!!
- Falando com tanta educação não tem como dizer não.

Eles gostavam de andar, por isso evitavam ir de carro para lugares próximos.
Ela adorava tirar ele do sério e ficava dançando no meio da rua e cantando alto só porque ele morria de vergonha.
No caminho eles sempre passavam na mesma loja de discos que ficava próxima a uma cafeteria.
A loja tinha uma atendente muito peculiar. Ela sempre usava camisetas de bandas e o namorado dela nunca saia de lá. Eles ficavam cantando Velvet Underground e conversando com os clientes como se fossem amigos de uma vida inteira.

Ai a discussão sobre juntar os discos começava.

- Até quando vamos continuar comprando discos separados?
- Deixa eu pensar...Sempre!
- Você dorme na mesma cama que eu mas não deixa eu chegar perto dos seus discos.
- Porque meus discos são mais valiosos que nosso apartamento.
- Só porque você tem o 'Dark Side Of The Moon' autografado! - ele falou em tom baixo enquanto olhava os discos.
- E você tem o 'Who Are You' autografado também. Deve valer até mais que o meu.
- Então porque não juntamos nossos discos logo?
- Porque da última vez que fiz isso o desgraçado ficou com o meu 'Blonde On Blonde'.
- Ué. O 'Blonde On Blonde' tava na vitrola hoje de manhã. - ele tentou lembrar quando ela comprou o disco de novo.
- Claro. Porque eu pulei a janela da casa dele e peguei de volta enquanto ele trabalhava.
- Você é uma tarada por vinil.
- E você é tarado por meus lps. Eu vi o jeito como você olha pra eles.
- Eu só gosto do que você ouve.
- Fique longe deles!!!

No mercado compraram mais vinho que comida e já de volta ao apartamento ela fez o jantar para eles enquanto assistiam a um filme alternativo.

- Você teria coragem de me apagar da sua memória como ele fez?
- Só se você me apagasse da sua como ela fez.
- Eu não te apagaria, mas pintaria o cabelo de azul igual ao dela.
- Eu acho mais legal verde.
- Eu sonhei com você a noite passada...
- E o que você sonhou?
- Não me lembro muito bem, mas você fazia panquecas.
- Desde que você veio morar comigo eu nunca mais sonhei contigo.
- Mas isso já faz 5 anos.
- É porque faz 5 anos que tenho o meu sonho morando comigo.

Ela não esperava que ele dissesse algo do tipo e sem resposta lhe deu um beijo com muito afeto.

O céu já estava claro e os raios de sol invadiam a sala. Eles adormeceram no sofá e não viram o filme acabar.

Quando ela finalmente acordou ele já havia saído para o trabalho. Ela permaneceu de pijama e fez café. Decidida que sairia da página 43 esqueceu de todos os possíveis afazeres do dia e ligou o computador.

- O que você tá fazendo em casa essa hora?
- Como assim?
- Ainda tá cedo. Você não deveria estar no trabalho?
- Mas eu já trabalhei hoje e não está cedo. É noite.
- Anoiteceu? - ela foi até a cortina e ao abrir viu que já era noite - a droga do dia já acabou e eu não vi passar?
- Como você não viu o dia passar?
- Eu fiquei na porcaria da página 43 o dia inteiro!
- Posso te ajudar de algum jeito?
- Pode. Preciso de cigarros. Muitos cigarros. Quantos o dinheiro puder comprar.
- Você não vai voltar a fumar. Se quiser beber eu pego o vinho, mas cigarros não.
- Então eu sei o que pode me ajudar. Ouve aquela música comigo?
- Aquela música. De novo? Quantas vezes você ouviu ela hoje?
- Só 7 vezes. Depois disso eu parei de contar.
- Pelo amor da minha vida eu faço qualquer coisa.

Eles sentaram em frente a vitrola com uma garrafa de vinho e ela colocou o disco do 'Dion and the Belmonts' e 'A teenager in love' começou a tocar.
Ficaram sentados lá por horas, sem dizer nada. Uma garrafa, duas, três, até que o vinho acabou e eles adormeceram ali mesmo.


- Quer sua aspirina agora ou depois?
- Quero um cérebro novo. Minha cabeça vai explodir. Se você me deixar beber assim de novo eu te tranco pra fora.
- Vamos. Acorda logo. Tá um dia lindo lá fora.
- Você sabe que é o homem da minha vida né? Mas se você continuar falando alto assim vou ser obrigada a te matar.
- Ok. Então vou ter que ouvir alguns discos seus até você acordar.
- Tá! Já acordei!

Eles não eram muito convencionais, mas sempre que possível davam um jeito de ir a algum parque no fim de semana. Ele levava livros e ela um Ipod.
Sentavam embaixo de qualquer árvore que tivesse uma boa sombra e lá ficavam até que a luz do dia começasse a acabar.

- Vou andar um pouco.
- Quer companhia?
- Não. Pode continuar lendo, só quero andar que nem essas loucas que falam sozinha e olhar para o nada.
- É por motivos como esse que eu não imagino minha vida sem você.
- Não perde uma oportunidade heim?!

E com um sorriso ela foi andar pelo parque e ele a acompanhou com os olhos até aquele vestido florido sumir em meio as árvores.

Ela gostava de andar sozinha pelo simples fato ser o único jeito que conseguia pensar. Olhar para tudo que não fazia parte de sua rotina ajudava a esvaziar a mente.
Ela nunca esteve tão feliz na vida. Tinha o homem que amava e que a amava de volta. Morava em um lindo apartamento. Tinha tudo que sempre quis. Mas ainda assim faltava algo. E era isso que a estava torturando. Não saber o que era.
Tinha dinheiro, pois vivia dos direitos autoriais de uma música que o pai dela um dia escreveu. Por isso trabalho pra ela era dispensável.

- Vestido bonito.
- Obrigada. - ela respondeu com um sorriso para a garota que estava brincando na grama.
- Gostei do seu cabelo também.
- Você é muito gentil. - ela respondeu de novo com mais um sorriso e olhou em volta para ver quem estava com a garota. Mas aparentemente ela estava sozinha.
- O que está escrito na sua perna? - a garota perguntou apontando para a tatuagem dela que ficava um pouco abaixo do joelho.
- É o nome de uma música. 'Comfortably Numb'. De uma banda chamada Pink Floyd. Você já ouviu falar?
- Sim. Meu pai disse que minha mãe cantava uma música deles pra eu dormir.
- Jura? Qual música?
- Eu não sei falar o nome muito bem. 'Wish...' - a garota fez cara que estava se esforçando pra lembrar o nome da música.
- 'Wish you were here'
- Isso mesmo. Mas eu não lembro dela.
- O que aconteceu com a sua mãe?
- Ela morreu quando eu tinha 5 anos.
- E quantos anos você tem agora?- ela perguntou com um aperto no coração.
- 11. Semana que vem faço 12. - garota respondeu com aquele sorriso de criança que adora fazer aniversário.
- Parabéns.
- Obrigada.
- E você ainda ouve a música que ela cantava pra você?
- Sim. Meu pai sempre coloca o disco que era dela e ouvimos juntos toda noite.
- E você gosta?
- Gosto muito. Adoro todos os discos que eram dela. Ela deixou de presente pra mim. Disse que queria que eu gostasse de música boa quando crescesse.
- E ela tem razão. Qual você gosta mais?
- Journey. Eu fico feliz ouvindo eles.
- Que bom. - ela sentiu um calor no peito por lembrar que gostava da mesma banda quando tinha a mesma idade da garota. - Eu preciso ir agora. Mas continue ouvindo essas músicas. Ok?
- Pode deixar.

E ela voltou ao encontro de seu amado que ainda estava lendo embaixo da árvore.
Ela sentou ao seu lado. Tirou o livro das mãos dele e o beijou.

- Você tem que tomar cuidado com eles e tirar a poeira sempre que possível.
- Como assim. Eles quem?
- Se você quiser que meus discos sejam seus também você tem que cuidar deles.
- Ainda não estou entendendo.
- Deixa de ser bobo e vamos pra casa cuidar dos nossos lindos discos.
- O que aconteceu nessa caminhada que te fez querer isso?

E ela paralisou na mesma hora. Agora as peças se encaixavam. A mãe dele morreu quando ela tinha 5 anos e ela ouvia 'Wish You Were Here' com o pai todas as noites. Ia ao parque sozinha, porque antes era a mãe que a levava pra andar entre as árvores.

- Nada demais. Só não me deixe mais tomar aspirina de estômago vazio e de ressaca. Acho que isso afetou meu cérebro.
- Ainda não entendi nada, mas por mim tudo bem.
- Me promete uma coisa?
- O que?
- Se tivermos filhos, não vamos deixar eles ouvirem musica ruim.


E eles caminharam de volta pra casa fazendo planos para sua nova e melhorada coleção de discos.





Continuem buscando os afetos perdidos entre as faixas de um disco
- @JessyMcLovin

Um comentário:

  1. torci pra evolução dela desde as 2 primeiras linhas. xinguei mentalmente ela de 'abobada', algumas vezes. e senti uns pingos de açúcar e afeto, muito bem empacotados.
    tu tinha razão, eles acabaram me prendendo até o fim.hihi (:

    ResponderExcluir